sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Quando bolinhas tornam-se agulhas


    
    Ele jogava sozinho. No meio da mesa de ping-pong havia uma placa de madeira. Como é ambidestro, o ritmo do jogo torna-se muito rápido, bate com uma mão e rebate com a outra...  Mas já não é mais o jogo com a placa de madeira, agora tem um jogador do outro lado. Não é mais o jogador solitário e ambidestro, mas há outro jogador, que não sabe jogar com uma raquete em cada uma das mãos.
    Não é propriamente um jogo de ping-pong, trata-se mais de um vai e vem da bolinha, que cruza o ar. Não tem regras, não há competição, busca por pontos ou vencedores. A bola vai e vem, ganha um ritmo, uma velocidade, que não é nem acelerada e nem lenta demais. Também se produz um som, que acompanha esse ritmo. Mas a bola também não precisa voar pelo ar, ela pode correr pela mesa ao encontro das raquetes, aí o ritmo se faz outro, o som também muda, mas o que não muda é o vai e vem que liga um jogador ao outro, no encontro das raquetes com a bola.
    Esse movimento pode parecer totalmente sem propósito, afinal não se tem um objetivo estabelecido. Se o que está em jogo não é ganhar, então o que é? De que se trata ficar ali, por horas buscando acertar aquela bolinha? Ele diz “bom, muito bom, você está acertando mais”, mas o que estou acertando? Quando é que acerto? Não há uma resposta para essa pergunta, pelo menos não uma que eu consiga entender, mas tenho a sensação de que não é importante entender.
    É nesse vai e vem, enquanto a bola rola na mesa ou no ar que vamos começando a falar, que posso puxar um assunto, ouvir o que ele tem a dizer. Falamos de trabalho, de não gostar de prédios, da beleza do dia, de muitas coisas...
Nesse vai e vem começo a me sentir meio costureira, tecendo com as linhas produzidas pelo traçado da bolinha uma rede, rede que é vínculo, que é contato. Sinto-me também criando um mapa, esses mesmos traços criados pelo movimento das bolinhas e da mistura que esse movimento faz com as nossas vozes vão dando contorno a um cenário, a paisagem de uma vida.
    As linhas que a bolinha traça não são visíveis, mas elas saltam com as sensações, que ali, no encontro com aquela casa, com aquelas pessoas, são muitas. Essas linhas também não têm um trajeto definido, às vezes, de repente, fazem curvas inesperadas, vão em direções que não pretendíamos quando batemos nela com a raquete. Erram o alvo, mas fazem aparecer falas, dicas, o contato entre os que jogam.
    Do que se trata, afinal esse jogo? Seria mesmo um jogo? Talvez se trate de uma estratégia. Uma maneira de ver que há um outro, de estar com ele, de compartilhar com ele, de poder ouvi-lo ou apenas durar com ele no silêncio das vozes (ainda que haja o som do próprio encontro, que é a bolinha encontrando a raquete, ou a mesa). É um estar junto, criando uma parceria, uma relação. É um modo de não precisar mais fazer todas as coisas sozinho só porque parece que ali cada um teria que dar conta de si.  É perceber a presença do outro e fazer-se presente perante o outro.
    No vai e vem da bolinha, no traçado dela pela mesa, o que se traça é uma estratégia de vida. Um modo de criar possibilidades para que essa vida se sustente, para que essa vida seja viva.

7 comentários:

  1. é isso aí! produz ritmo né?
    bom ver isso te contagiando e se transformando em escrita. Quando a experiência esbarra na palavra, cria sentido, cria chão pra essa experiência mesmo... E que experiência estamos vivendo! UAU!
    nós seguimos juntas.
    um beijo supervisora.
    vou dormir pq amanhã tem trabalho a fazer
    :)

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  2. Lindo texto, Camila! O q é bonito de ver é sua capacidade de transformar um encontro que pode parecer tão trivial em algo tão significativo. Capacidade ou sensibilidade? Acho que os dois: capacidade da sensibilidade.

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  3. Camila!
    Que ótimo poder acompanhar por aqui esse caminhar. E compartilhar, aqui a escrita e lá, a bolinha, a velocidade, o barulho, um plano que começa numa mesa de ping-pong e que leva a outros tantos planos!

    Que alegria!

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  4. Camila,

    Com imensa alegria leio você, o que é mais que ler os seus textos,é virar cada página desse teu devir camaleão com o sopro de nossa sincera amizade.

    Um beijo,

    Marthi.

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  5. Que intensidade desse tecer, que faz rede, vínculo, contato! Tecer-COM é o próprio fazer clínico, que insiste em nos lembrar a beleza desse trabalho!

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  6. Diante de um texto tão belo e sensível tenho pouco a dizer, que talvez signifique muito: afetação.
    Isso é o que se produz em mim ao lê-lo. Fiquei com vontade de experimentar esse jogo que não se define tanto como tal, que está para além de uma competição e sim como afirmação! Rede! Laços!
    Parabéns pelo trabalho! Vejo que os espaços de cuidado dos quais compartilhamos estão produzindo muitos movimentos na sua vida. Fico emocionada, de verdade.
    Ontem, antes de chegar à supervisão, fiz um retrospecto de 2010 e me emocionei quando me dei conta de que havia lhe tirado como "amiga oculta". Foi um prazer pintar cada parte daquela caixinha singela lembrando das mil facetas de Camila...
    Bjs!!!

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  7. O blog apagou meu comentário todo, rs.

    Seu texto é lindo Camila, e como eu estou nas onda dos cheiros e dos sabores achei ele doce, com aromas cítricos que se misturas e brincam entre si.

    Ver a produção da vida se dando nos atos simples do cotidiano demonstra apenas que a intensidade está/pode estar em qualquer lugar. Foi muito legal ver como a comunicação se deu por essa via. Despretensioso o ato vira um meio, que vira uma rede que começa a se montar... Essa rede tem vida e pulsa na medida em que vocês produzem ela.

    Ele fala de ganhar. Você ganhou sem ao menos saber as regras. Você não precisava, pois quem ganhou foi toda a Camila. Talvez Camila que soubesse regras fosse de uma frequência diferente e que por sua vez não ganharia, não sei. Sei que você ganhou enquanto o que você foi naquele momento.

    Sua sensibilidade é doce.

    beijos

    Yuri Jahara

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